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Escola sem Partido: um movimento de ressentimentos

Atualizado: 21 de out. de 2019


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Ano de 2019. Vou para mais uma audiência pública. No caminho, fui pensando que o assunto bem que poderia ser algo avançado, alguma proposta de política pública, por exemplo, sobre um plano municipal para a primeira infância, quem sabe. O que oferecemos de estímulos à criança até os seis anos de idade é determinante no adulto até o fim da vida. Isso reflete no adulto que somos. Adultos que decidimos o futuro das crianças. Mas, o assunto não é esse. Chego na Câmara Municipal e volto à realidade ou, modo crítico ligado, ao passado. Trânsito interrompido, guardas municipais e telão para público excedente. O tema, Escola sem Partido. Esclareço que não sou profissional da educação, participo do debate como cidadão e pai de uma criança em desenvolvimento. Se, curiosamente, os líderes do movimento e a maioria dos seus apoiadores são leigos no assunto, acho que posso dar meu pitaco também.


Acho desnecessário descrever o local, os participantes, o público e acontecimentos inusitados. Prefiro ir direto ao assunto e acabar logo este artigo, pois o tema me é custoso. O palestrante é Miguel Nagib, fundador do movimento, advogado, procurador, apresentado, frequentemente - não desta vez -, como católico, defensor da moral e da família. Mas, quando palestra, o Sr. Nagib coloca a questão como jurídica, de direito. Sobre essa questão, se o movimento é jurídico, político, religioso, moral etc, sobre isso cada um tem a sua opinião. Porém, é prudente lembrar que o palestrante advertiu que, dependendo da colocação no debate, ele pode processar o opinante. Um parêntese: a judicialização de políticas públicas já é algo recorrente. E, agora, vemos crescer essa prática de judicializarem a opinião, o debate, a política, tanto que vemos as disputas políticas serem transferidas para os tribunais. Entendo essa conduta como antidemocrática, imatura, principalmente em uma audiência pública sobre um projeto de lei.


No site da organização, ela é apresentada como uma associação informal, independente, sem fins lucrativos e sem qualquer espécie de vinculação política, ideológica ou partidária. Seus membros se dizem "preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior" por culpa de "um exército organizado de militantes travestidos de professores". O principal objetivo do movimento é a aprovação de leis municipais, estaduais e federais para coibirem esse "abuso", segundo seus defensores. Até aí um direito republicano do movimento. Mas, vejo que o movimento de forma indireta e, em tese, sem responsabilidade sobre isso, incentiva práticas nada civilizadas, até violentas, tais como, abertura de canais nas redes sociais para denúncias contra professores "doutrinadores", políticos e pais invadindo escolas, alunos filmando professores sem autorização, clima litigioso em detrimento do diálogo e da conciliação e exploração da pós-verdade.


Como estava pouco a par do assunto, dias antes, estudei para entender. Posso dizer que a palestra foi como eu havia previsto, nebulosa. O Sr. Nagib, estrategicamente, preenche a maior parte do tempo com a demonstração de fotos e vídeos de supostos casos de doutrinação por professores em escolas. Em quinze anos de movimento, foi apresentada uma única informação com base em pesquisa, uma pesquisa de opinião, realizada em 2008, curiosamente e não por acaso, passada no slide rapidamente. A Associação Nova Escola, da Fundação Lemann, através de sua revista, comenta essa pesquisa ao responder se existe um exército de professores militantes: "Esse argumento é frágil, baseado em apenas uma pesquisa de opinião e, ainda assim, dependente de uma associação controversa de ideias. O Escola Sem Partido se refere aos educadores brasileiros como um "exército organizado de militantes travestidos" amparado na pesquisa de 2008, encomendada pela revista Veja ao Instituto CNT/Sensus. Na sondagem, 78% dos professores dizem que a principal função da escola é "formar cidadãos". Para o ESP, isso equivale a "apenas e tão somente martelar ideias de esquerda na cabeça dos estudantes".


Totalmente oposto a maioria dos movimentos da sociedade civil, em quinze anos, o Escola Sem Partido não apresenta dados confiáveis que comprovem suas teses. Exemplo é a questão da discussão de gênero. Não há base em pesquisa para afirmar que a orientação sexual seja influenciável por alguém. Contrariando pesquisas mundo a fora, o movimento afirma que sim, baseado em opiniões pessoais. É muito frágil o argumento para se concluir que alguém possa se tornar homossexual pela influência do professor. Outro exemplo é a quantidade de professores doutrinadores. Mesmo considerando que exista a doutrinação, não há sustentação em números para se provar se os casos são frequentes ou apenas pontuais.


Vejam os números do Estado do Paraná, que rejeitou o projeto de lei inconstitucional: 2.143 escolas, 35 mil turmas, 100 mil professores, 1 milhão de alunos. De fevereiro a agosto, 15.690 reclamações. Apenas 34 queixas de doutrinação a serem comprovadas. O Sr. Nagib, durante toda a explanação, não apresentou nenhum dado sobre as queixas que o movimento recebe. Sobre números, disse que poderia ficar a noite inteira demonstrando vídeos. Ora, doutor, creio que mesmo passadas vinte e quatro horas de vídeos, o resultado seria, provavelmente, na mesma proporção do Paraná, dado o tamanho do nosso país. É algo de se estranhar, quinze anos de militância, uma associação de defesa de direitos, ainda informal, sem base científica para seus argumentos, sem pesquisas publicadas, com pouco embasamento científico e empírico, apoiada apenas em grupos de denúncias no WhatsApp e que utiliza as redes sociais para impulsionar projetos de lei.


Além da questão científica, temos a questão jurídica. Em entrevista, João Paulo Faustinoni e Silva, do grupo especial de Educação do núcleo da capital do Ministério Público de São Paulo, diz que já existem normas que possam coibir e oferecer medidas para qualquer excesso em sala de aula, como os estatutos do magistério e do servidor público. “Uma escola aberta, plural, que tenha conselhos funcionando e associações de pais devidamente representadas consegue fazer esse acompanhamento e, se for o caso, denunciar”.


Ao contrário da propaganda, a situação dos projetos de lei pelo Brasil não é nada tranquila, os pareceres desfavoráveis são em maior número que os favoráveis. A questão já chegou ao Superior Tribunal Federal e o julgamento de inconstitucionalidade pode acontecer e se tornar jurisprudência. Essa deveria ser a maior preocupação do movimento. Mas, não parece ser. Será que a proposta do Ministro da Educação, anunciada em agosto, de tornar a ideia um programa de governo seria o plano B?


Três questões: se o Escola Sem Partido reforça o que já está na Constituição e se já existem mecanismos legais de apuração de abusos, para que são necessárias leis municipais, estaduais e federais, considerando que a gravidade do assunto é medida por opiniões pessoais e que não há evidência substancial que demonstre toda essa doutrinação propalada? Quão importante é o problema da doutrinação em relação aos grandes e verdadeiros problemas da educação? Existem outras intenções?


É nesse ponto que gostaria de chegar, me desculpem pela enorme volta. O que expus e refutei, até esse momento, foi sobre os objetivos republicanos declarados pelo movimento. Passo agora às minhas observações e impressões pessoais. O movimento Escola Sem Partido parece, contraditoriamente, um partido político à moda brasileira. Tudo o que está em seu programa, na prática, é outra coisa. Fui ver as entrevistas dos apoiadores, os discursos dos deputados que apoiam a causa e o facebook do movimento. A maioria das declarações e discursos giram em torno da família, da religião, da moral e de uma fixação insana contra as questões de gênero, o marxismo e o comunismo. A mistura de tudo isso é, no mínimo, algo incompreensível. Vejamos alguns trechos dos discursos taquigrafados de dois deputados defendendo o projeto de lei, na Câmara dos Deputados.


Lincoln Portela (PR-MG): "Diga-se de passagem que essa aberração começou com o Ministro Paulo Renato, em 1995, e passou pelas hostes do ateu socialista Fernando Henrique Cardoso. As academias brasileiras começaram a ser empoderadas, e empoderadas por um marxismo selvagem, ou seja, nada presta além do marxismo, nada presta além do leninismo. Fala-se também de Stalin, que acabou matando comunistas, mas também matou milhares de judeus incentivado - incentivado - por Hitler... Estou vendo ali o Dr. Miguel Nagib. Se não me engano, foi autor originariamente do projeto, pelo qual lutou muito. S.Exa. é advogado, católico. O pessoal fala muito que são os evangélicos que estão fazendo isso. A Igreja Católica somou fileiras, como o missionário Flavinho, católico, também serrou fileiras... E há outro detalhe: se, de repente, um aluno tem uma ideia um tanto quanto criacionista, o professor o obriga a escrever na prova ideias leninistas e marxistas, e ele é reprovado na prova, ele não pode fazer prova... Os professores precisam ser respeitados, ter salários melhores e receber o respeito dos alunos! Agora, lamentavelmente, professores que trabalham com uma ideologia marxista, leninista e outras massacram com bullying, ferem o Código Penal, ferem o ECA, principalmente através da erotização precoce das nossas crianças. Erotizam precocemente as nossas crianças. Isso está em todo o Brasil. E não adianta receberem a cobertura de uma determinada emissora de televisão que segue os ensinamentos de Butler para fazer com que as crianças se tornem experimento deles, para que elas possam se revoltar contra o cristianismo. Se eles puderem - eles, sim! - rasgam as Bíblias, queimam as Bíblias. Mulheres feministas, quando o Papa veio ao Brasil, colocaram crucifixo nas vaginas; homens colocaram crucifixo nos ânus. Eu estou aqui com minha imunidade Parlamentar e não estou falando nenhum palavrão. É um absurdo! Estão derrotados, não vencerão, porque o mal não prevalece sobre o bem. Querem falar sobre Lenin? Querem falar sobre Stalin? Falem, não estão proibidos de falar, mas não façam achaque àqueles que sabem que as coisas são diferentes, que não são daquela maneira"


Bia Kicis (PSL-DF): "Durante 2 anos, tive a oportunidade de acompanhar os debates aqui na Casa, na Comissão Especial sobre o Escola sem Partido, mas, muito antes disso, há quase 15 anos, acompanho, no movimento Escola sem Partido, fundado pelo advogado Miguel Nagib, o envolvimento crescente da sociedade com relação à doutrinação que é feita nas escolas em desfavor das nossas crianças, dos nossos adolescentes... O que ocorre é que professores - na verdade, pessoas travestidas de professores - têm desrespeitado infinitas vezes as nossas crianças e adolescentes, além de terem desrespeitado também o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral e a consciência moral e religiosa dos pais, da família, e não do professor... Eu, como defensora da família e uma pessoa acostumada a respeitar também os professores... É com profunda tristeza que tenho acompanhado hoje professores, que na verdade merecem muito mais o título de molestadores de crianças, invadirem o espaço da sala de aula, que deveria ser um local seguro, onde os nossos filhos, os nossos netos, os nossos sobrinhos pudessem receber uma formação que lhes possibilitasse, mais tarde, adentrarem o mercado de trabalho e serem pessoas úteis para a sociedade, pessoas com valores que permitam que novas famílias sejam criadas e que o nosso País seja uma nação. Nós assistimos com muita tristeza a essas crianças sendo doutrinadas, inclusive sendo iniciadas precocemente na chamada ideologia de gênero e sendo sexualizadas".


Caro leitor, tire suas conclusões sobre esses discursos. Não quero influenciar ninguém para não me enquadrarem nos termos elogiosos dos nobres deputados.


O que vi no Facebook do Movimento Escola Sem Partido: Vídeo do Sr. Nagib para divulgar número de WhatsApp para receber denúncias contra professores "doutrinadores". É legal isso?; Post do Sr. Nagib xingando a mãe de jornalista que se posicionou de forma contrária ao movimento e ameaça de agressão utilizando o livro da Constituição como objeto; Foto de um rapaz ensanguentado, vítima de agressão de militantes de extrema esquerda; Post se referindo a um professor, suposto doutrinador, como "esse maldito".


Essa pessoa que palestrava não parecia, de início, ser a mesma da rede social. Mas, no decorrer da audiência, observando, percebi que era sim. O discurso do direito, do advogado, por várias vezes foi substituído, pela agressividade, pelo panfleto, pela inaptidão ao debate. Nunca vi um clima tão beligerante em outras audiências, comissões, conferências ou debates dos quais participei. O único responsável por esse clima foi somente o Sr. Nagib. Percebi que é da natureza dele a divisão, não tenta se aproximar da pluralidade. Uma condução de baixo nível. Saímos da audiência sem saber se a nossa cidade precisa mesmo desse projeto de lei, já que os profissionais da educação, membros da mesa, não foram ouvidos. Eu não consegui me expressar no momento, tamanha a complexidade do absurdo.


Minha opinião é que o Movimento Escola Sem Partido se nutre da divisão da sociedade. Por quinze anos patinando na inconstitucionalidade, encontrou na eleição de 2018 políticos fanáticos que, em conjunturas normais, não seriam eleitos para defender teses retrógradas como essa. Existe uma pauta principal oculta, que é a não aceitação pela figura do chefe da família "tradicional" sobre o fato de que ele não pode mais obter a harmonia familiar na base da força, mas sim na base do respeito e do diálogo. Os pais nem sempre têm razão. Por isso precisamos de uma sociedade justa, solidária, fortalecida na democracia e não no autoritarismo e no pensamento único. As crianças são criadas para a vida, para a vida delas. E a escola é importantíssima nesse processo. Os tempos mudaram, mas essa parcela retrógrada da sociedade não acompanhou a modernidade da Constituição Federal de 1988, a qual defende a pluralidade, o respeito às diversidades, a liberdade de expressão. Muitos armários ainda estão trancados. Apesar da boa intenção inicial, o movimento é de ressentimento por conta desses apoiadores e ideólogos e não pelas pessoas que dão a cara a bater nos portões das escolas. Essas, são vítimas da desinformação.


Ressentimento e negação pela ciência, ocasionados pela falta de acesso à educação ou por terem sidos contrariados pelo pensamento hegemônico em algum momento da vida. Vide o ressentimento do Ministro Weintraub contra as universidades. Também, ressentimento pelos complexos familiares, pelas contradições religiosas, pelo tradicionalismo e pelo patriarcalismo do passado. Hoje, apesar das resistências, nossa Constituição garante que esses armários sejam abertos. Por isso, penso que o Escola sem Partido está no limite do espectro democrático. Seu fundador disse que o movimento não é de direita. Concordo, o movimento é de extrema direita. Por mais que o discurso seja constitucionalista, as ações de seus articuladores são extremistas, nos limites da Constituição. Os discursos e fatos estão aí para provarem essa contradição. E provocam o outro extremo, a extrema esquerda. Os dois pólos se alimentam, assim como ocorre no momento político atual.


Finalizo, retomando à ideia do primeiro parágrafo. Se o nosso Presidente da Câmara Municipal tivesse convocado uma audiência pública sobre a Primeira Infância, saberíamos, por exemplo, que o posicionamento do movimento sobre as crianças serem totalmente passivas e suscetíveis a qualquer tipo de doutrinação é um equívoco. O movimento vê a criança como sujeito de "miolo mole", um termo utilizado em algum momento no debate. Saberíamos, ainda, que o desenvolvimento adequado da primeira infância proporciona menos delírios persecutórios e menos ressentimentos na vida adulta. Uso o assunto da primeira infância para dar um recado sobre o que realmente importa. Poderia ser qualquer outro assunto em desenvolvimento e não um absurdo já superado.


O Projeto Escola sem Partido é uma ameaça não somente às liberdades relacionadas à educação, mas à saúde mental da população. A maioria de seus opositores pede que deixem os professores em paz. Eu também. Mas eu peço, especialmente, que deixem as crianças em paz. Elas não merecem essa violência institucional. Estendo o pedido aos vereadores da minha cidade. Democraticamente, eu peço.

 
 
 

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